Política pública no setor elétrico: Ordem para o Progresso 3
Marco Delgado para o Poder 360 em 20/2/20
No artigo “Mercado livre de energia: Ordem para o Progresso”, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, recordei os ideais do liberalismo social, político e econômico no século 19, entabulados pelo economista John Stuart Mill, objetivando pautar as condições essenciais ao progresso sadio da abertura do mercado livre de energia no Brasil.
Em “Modernização do setor elétrico: Ordem para o Progresso 2”, também publicado no Estadão, o protagonista foi Thomas Hobbes, que nos deixou a reflexão de que a liberdade individual, se exercida ao extremo, resulta em caos coletivo. Por isso, é legítimo e necessário a constituição do Estado (ilustrado pelo poderoso ser mitológico Leviatã) para estabelecer a Ordem na sociedade.
Nessa continuação da série, convido o filósofo e compositor suíço do século 18 Jean-Jacques Rousseau. Ele concordava com Hobbes sobre a legitimidade do Estado, mas discordava de que seria uma dádiva hereditária, constituído por autocratas e déspotas como Luiz 14, o Rei Sol da França.
O iluminado Rousseau propagou que a própria sociedade poderia ser a protagonista para estabelecer seu pacto social, constituir as instituições de poder e, principalmente, escolher seus governantes. Dentre suas inquietudes encontramos uma que abarca as discussões atuais do setor elétrico: O que difere uma legítima política de interesse público daquela que, sem as sombras, revela-se com uma política de interesse particular ou de privilégios?
Uma política pública, em última análise, é uma intervenção no status quo que visa o bem coletivo, mas pode limitar liberdades individuais. Por isso, deve ser bem fundamentada, ter avaliação dos seus resultados e, preferencialmente, tempo de vigência.
Assim, a 1ª questão que deve ser observada é qual o problema que ela visa resolver. Por exemplo, devemos mitigar os efeitos do aquecimento global a benefício da civilização. Para tanto, uma ação seria promover a matriz energética mais limpa do ponto de vista ambiental. Nessa linha, podemos incentivar, por meio de subsídios e/ou isenções, as fontes renováveis até que obtenham maturidade competitiva.
A energia das fontes alternativas, dentre elas a fotovoltaica, pode ser obtida atualmente por 2 principais tipos de modelo de negócio:
por meio de leilões públicos contratados pelas distribuidoras, ou seja, via geração centralizada;
e pelo compulsório sistema de compensação de energia que designamos de geração distribuída (GD).
Considerando que em ambos os modelos de negócio a sociedade obterá os mesmos benefícios ambientais, qual deve ser a escolha do formulador da política pública? Salvo melhor juízo, aquela de menor preço para a sociedade e não somente para o indivíduo. Para tanto, deve comparar as alternativas. Foi precisamente isso que o Ministério da Economia fez ao apresentar sua contribuição pública para o tema.
Irresignados, os interessados na política de privilégio tentam justificar uma “outra conta”: a de comparar a geração distribuída com o preço de uma termoelétrica.
Contudo, essa mesma regra deveria ser aplicada para quantificar o benefício da geração fotovoltaica centralizada. Ou seja, regras iguais aos “competidores” para mensurar qual é o modelo de negócio mais eficiente para a sociedade e, consequentemente, para estabelecer a política pública. Assim, por simples propriedade transitiva ensinada na matemática do ensino fundamental, o resultado seria o mesmo encontrado pelo Ministério da Economia e está correta para avaliação de uma política genuinamente pública.
Vale lembrar que as distribuidoras contrataram, nos leilões públicos de 2019, quase 2 GW de potência oriunda de fontes solares e eólicas por menos de R$ 100/MWh para todos os consumidores, independentemente de suas posses e rendas. Por outro lado, a aquisição da energia excedente da geração distribuída é valorada a R$ 550/MWh. Esse sobrecusto impactará, ao cabo, a tarifas dos demais consumidores.
Note que o consumidor, fazendo uso de sua liberdade de escolha, pode optar por gerar sua própria energia por painéis fotovoltaicos, ficar desconectado da rede elétrica e investir em baterias para ter energia à noite e nos dias nublados e chuvosos. Se a decisão é individual, os benefícios e custos também devem ser. Por isso, não caberia uma política pública de interesse coletivo para dar subsídios ou isenções que, ao cabo, impactariam nas tarifas de energia elétrica dos demais consumidores.
Outro exemplo das práticas dos defensores da política de privilégios é selecionar a experiência internacional que lhe serve a causa. Aquelas mais razoáveis e equilibradas, como visto na Europa, são deixadas às sombras.
Mais recentemente, surgiu a alegação de que a geração distribuída evita o acionamento de termoelétricas a benefício dos demais consumidores. De fato, a equação que teria sentido econômico e regulatório seria a diferença entre o custo marginal da energia evitada e a tarifa de energia elétrica, a chamada TE.
Dessa forma, o alegado benefício estaria superestimado em mais de 200%. Entretanto, o mais relevante é saber que esse é outro benefício circunstancial e intermitente, pois se consideramos o custo marginal de operação de fevereiro do corrente ano, o resultado é deficitário!
Assim, o prejuízo é ainda maior aos demais consumidores, além daquele já ocasionado pelo fato de que os usuários da geração distribuída não pagam adequadamente pela infraestrutura das redes elétricas e pelos serviços que lhe são prestados.
Esses foram alguns exemplos que adensam outros que já foram destacados no artigo, publicado no jornal digital Poder360, que ilustram as diferenças entre legítimas e meritórias políticas públicas daquelas de interesse na manutenção de privilégios. No caso da geração distribuída são injustos e já se mostram desnecessários.
A boa expectativa é a de que o projeto de lei que tramitará no Congresso Nacional seja inspirado no Marco Regulatório do Prosumidor (GD 2.0), apresentado ao Ministério de Minas e Energia no final do ano passado. Uma proposta de desenvolvimento sustentável para a geração distribuída coerentemente com a abertura do mercado livre. Ademais, zela pela dimensão social ao propor, também, a criação do Programa Energia Renovável Social que visa oferecer subsídios a quem, de fato, necessita e, mesmo assim, com sinal de eficiência.
Como diria, neste contexto, nosso convidado Rousseau para suas palavras finais: “Quanto melhor constituído o Estado, mais os assuntos públicos prevalecem sobre os privados”.
*Marco Delgado, diretor da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee)
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